Outros alegam que a extensão de direitos foi tamanha a ponto de sobrecarregar o Estado em suas obrigações. Que considerações o senhor faria acerca desses posicionamentos?
São críticas, a meu ver, exageradas, que partem de círculos de opinião desde muito hostis à Constituição. Em geral, as cartas promulgadas em países recém-egressos de ditaduras prolongadas, habitualmente ostentam uma prolixidade que abriga excesso de matérias de menor importância, postas na Lei Fundamental, para auferir a proteção maior que a rigidez constitucional lhes confere.
Em 2008, o Poder Judiciário completa 200 anos de independência. Que avaliação o senhor faz acerca do papel desse poder no Brasil atualmente?
Em recente artigo estampado na Folha de São Paulo mostrei que D. João VI, o fundador dos 200 anos de criação e independência do Poder Judiciário no Brasil, fora o precursor da monarquia constitucional em nosso país quando, às vésperas de seu retorno a Portugal, lavrara o decreto, logo revogado, de convocação de uma junta de Procuradores, que funcionaria como uma espécie de constituinte embrionária para o Reino do Brasil, com abrangência dos Açores, Canárias e Cabo Verde. O ato, por inspiração de Palmela, grande estadista liberal, foi abortado por oposição militar da guarnição portuguesa do Rio de Janeiro, que viu ali o germe separatista de ruptura dos dois reinos e decidiu manter-se fiel às Cartas de Lisboa. Mas sua inquirição se prende menos à ancianidade dos três Poderes da soberania, que ao papel representado pelo Poder Judiciário no Brasil contemporâneo. E esse papel só se compreende melhor em ligeira remissão ao passado, quero dizer, ao advento da República e principalmente à influência que Rui Barbosa teve com o seu magistério constitucional vinculando o Judiciário, como nos Estados Unidos, à guarda e defesa da Constituição. Foi ele o introdutor, entre nós, do controle difuso de constitucionalidade, até chegarmos à forma mista, mediante o desenvolvimento posterior do controle concentrado; o primeiro de origem americana, desde Marshall, o segundo de procedência européia, desde Kelsen e a fundação das Cortes Constitucionais do século XX. A Constituição de 1988 deu largos passos nessa última direção, fortalecendo o controle concentrado. Ambos fizeram o Supremo produzir uma jurisprudência em que avulta e prepondera sua função de guarda da Constituição, por isso mesmo de tribunal constitucional, que, formalmente ele desde muito já devera ter sido, investindo-se exclusivamente no exercício das atribuições ínsito às Cortes Constitucionais. Do ponto de vista material, no ciclo de nossa evolução constitucional, a partir da Carta de 1988, o nosso Supremo, em verdade, tem sido Tribunal Constitucional, colégio legislador de primeiro grau, espécie de constituinte de plantão. Porquanto, ao dizer o que é a Constituição, em certa maneira, não raro está a legislar com mais rapidez, aliás, que as duas casas do Congresso, podendo a esse respeito, rivalizar com o Executivo, na velocidade com que este expede medidas provisórias. Mas a decadência congressual e executiva é tamanha no país pelas increpações de corrupção e por escândalos que cercam tanto o Legislativo como o Executivo, que estes dois Poderes, dado que tenham origens mais democráticas de legitimidade que o Supremo Tribunal Federal, perderam, todavia, em decorrência portanto de razões morais, maior parcela de credibilidade que a “constituinte togada”. A meu ver, enquanto não se fizer mais legítima, mais autêntica, mais democrática a ação governativa do Executivo e do Legislativo, o que unicamente se obterá com o cidadão governante da democracia participativa no topo do exercício efetivo da soberania, o regime estará mais bem protegido e resguardado com os arestos legislativos dos ministros do Supremo. Essa substituição de papéis é a certidão da crise constituinte do Brasil, que nenhuma das nossas Constituições, nem a de 1988, a melhor de todas até agora, pôde resolver.
A teoria dos direitos fundamentais desenvolvidos em gerações foi elaborada pelo senhor, com acatamento acadêmico internacional. Como o Brasil se coloca diante desse contexto? É possível a realização de tais direitos num país de dimensões continentais?
O ponto de destaque donde deriva a superioridade e o avanço da Carta de 1988, sobre quantas a antecederam, desde o império até aos nossos dias, jaz na declaração de direitos fundamentais da primeira e da segunda gerações, direitos civis e políticos e direitos sociais, constantes, respectivamente, dos artigos 5º e 6º da Carta Magna. Não se trata apenas de meros enunciados, mas de um discurso programático, de direito, de eficácia, validade e aplicabilidade, rodeados de garantias constitucionais; direitos fundamentais acima de tudo, de substrato e natureza principiológica. O revestimento principiológico da Carta culmina com princípios que representam a revolução da normatividade das Constituições, e as fizeram passar decisivamente num definitivo avanço da teoria do patamar político para o patamar jurídico. As constituições já não se inclinam simplesmente a distribuir competências e organizar poderes, mas de preferência a concretizar direitos humanos fundamentais e a fazer mais sólidas as garantias constitucionais desses direitos. Este, poder-se-á dizer, é o constitucionalismo de última geração, que ultrapassou, por inteiro, o da velha escola liberal.
De que maneira os mecanismos de democracia direta, como iniciativas populares, plebiscitos e referendos, podem interferir na vida do cidadão e que papel teria a mídia nesse cenário?
A meu parecer, o futuro da Constituição pertence ao Estado Social da democracia participativa. É ele que escreverá os capítulos vindouros do Estado de Direito dos países da periferia. Essa tarefa se cumprirá por via e emprego freqüente dos institutos da democracia direta, aquela que fará com os plebiscitos, os referendos, as iniciativas populares, os vetos e as revogações de mandato legislativo, o futuro das Constituições. Estamos atravessando um grande momento histórico em que a decadência do corpo representativo nas duas Casas do Congresso Nacional faz prever breve a ascensão hegemônica da democracia do cidadão participativo. Esse é o caminho para evitar a tragédia das ressurreições golpistas, do povo oprimido e reprimido, das ditaduras que paralisaram por duas décadas o relógio da democracia, afastando da cena política a mocidade, destruindo-lhe a vocação para o exercício legítimo do poder. As lideranças minguaram e até hoje pagamos a fatura dessa dívida que o povo não contraiu.
O que o senhor pensa do constitucionalismo baseado em princípios? Os magistrados, advogados e promotores estariam preparados para essa prática na jurisdição?
A enorme dificuldade de estabelecer um constitucionalismo de emancipação nacional, fundado na flexibilidade fecunda dos princípios que, bem aplicados, têm a chave de todos os nossos conflitos, crises e problemas, deriva do despreparo da magistratura, a qual não se capacitou ainda, da importância superlativa que tem o direito constitucional em sua formação e no exercício da função judicante, em sua formação. É imperativo o estudo e o saber atualizado, para fazer justiça numa sociedade cada vez mais complexa e problemática, que somente pode ser governada com legitimidade, se formos fiéis e leais à Constituição. Esse é o maior dever que impende a juízes, advogados, procuradores, defensores públicos, etc. As escolas da magistratura têm por tarefa mais urgente a educação constitucional do juiz, volvida para a formação de uma consciência principiológica, na aplicação do direito. Se falharem nessa missão pedagógica, não haverá maior predador futuro da Constituição que o magistrado das regras, o juiz da idade hegemônica do jusprivatismo, das estreitezas do positivismo jurídico, enfim, o juiz inanimado que a história embalsamou nos duzentos anos do Código de Napoleão. O princípio é vida; a regra, que o contravém, é decrepitude. |